O homo sapiens, como lembrou o historiador israelense Yuval Harari, prefere perceber o mundo pelas lentes das narrativas, em vez de fazê-lo pela observação sistemática da realidade. Adicionalmente, preferimos, via de regra, as narrativas mais simples àquelas mais complexas 1 . Por que isso acontece?

A lógica explicativa é a mesma para as duas constatações: narrativas podem ser construídas muito mais rapidamente e ser bem mais persuasivas do que o estoque de informações oriundo da observação empírica; da mesma forma, narrativas simplificadas da realidade são mais facilmente compreendidas e transmitidas do que as mais complexas.

Além disso, do ponto de vista evolutivo, não é difícil constatar a eficácia desse artifício: a espécie humana tem cerca de trezentos mil anos, enquanto a ciência moderna é muito mais jovem, com algo em torno de cinco séculos. Isso quer dizer que as narrativas acerca da realidade tem desempenhado um papel fundamental na nossa trajetória – sobretudo até o início da era moderna.

Desde então, a importância da atividade científica (responsável pelo estoque de conhecimento adquirido através da observação sistemática e cuidadosa da realidade) tem se expandido constantemente. Isso não significa, no entanto, que as narrativas (desde as mais simples até as mais complexas) tenham deixado de ser relevantes na forma como nos relacionamos com a realidade à nossa volta.

Considere-se, por exemplo, a questão do avanço tecnológico. Como discutido em texto anterior, um conjunto de transformações profundas e abrangentes, que pode ser localizado nas décadas de 1960 e 1970, desencadeou um processo acelerado de evolução tecnológica: microeletrônica, biotecnologia, inteligência artificial, internet das coisas, etc. A magnitude desse processo de revolução tecnológica é de tal ordem que muitos dos seus efeitos e desdobramentos ainda não podem ser percebidos ou (muito menos) compreendidos adequadamente.

Esse cenário um tanto nebuloso, porém, não impediu que o campo do desenvolvimento tecnológico se transformasse em palco para disputas entre narrativas as mais variadas. Uma das mais conhecidas sustenta que as baixas taxas de crescimento econômico e a estagnação dos níveis de renda dos setores de classe média em países desenvolvidos teriam sido causadas pela concorrência dos países pobres e em desenvolvimento. Isso porque esses países, ao se transformarem em verdadeiros celeiros de mão-de-obra barata, teriam provocado o deslocamento das plantas industriais em direção ao terceiro mundo e, consequentemente, a perda de emprego e renda nos países ricos.

Embora aparentemente convincente, essa narrativa apresenta algumas falhas à luz da teoria econômica e da observação empírica. Tratemos de duas delas.

Em primeiro lugar, para entender o deslocamento de plantas industriais para países pobres
e em desenvolvimento é preciso ter em conta o lado econômico da oferta: a mão-de-obra
não especializada, como se sabe, é abundante nesses países e escassa nos países desenvolvidos; já quando se considera a oferta de mão-de-obra especializada os cenários se invertem. Logo, do ponto de vista estratégico, faz todo sentido que as empresas mantenham nos países desenvolvidos os departamentos de criação e construção de marcas, por exemplo, e transfiram suas linhas de produção e montagem para países onde a disponibilidade de mão-de-obra não especializada é farta.

O segundo ponto a ser considerado aqui é que o incremento da concorrência que os países desenvolvidos tem enfrentado não é uma deformação econômica que possa ser corrigida com algum tipo de protecionismo, mas um dos fundamentos básicos do comércio internacional, que consiste em premiar a eficiência no processo de produção. Nesse sentido, a competitividade dos países é uma função da produtividade de suas economias, que é dada pela razão entre o total produzido (PIB) e o número de horas trabalhadas 2 .

A produtividade do trabalho, por sua vez, não tem a ver com fatores naturais (como
inaptidão para o trabalho, por exemplo), mas com aspectos relacionados à construção dos
capitais físico (máquinas, equipamentos e ambiente de negócios) e humano
(conhecimentos, competências e habilidades dos trabalhadores) dos países. Isso significa
que aquelas economias com níveis mais altos desses dois tipos de capital são mais
produtivas e, consequentemente, mais competitivas no mercado internacional do que
aquelas com níveis mais baixos.

Voltando ao incremento da concorrência que tem sido percebido – sobretudo em relação aos países do Leste e do Sudeste Asiáticos – em países pioneiramente desenvolvidos como Estados Unidos e Reino Unido. Países como Coreia do Sul, Taiwan, Singapura e China tem se tornado progressivamente mais competitivos no mercado internacional porque a produtividade do trabalho em suas respectivas economias cresce acelerada e persistentemente há décadas, enquanto a de muitos países desenvolvidos evolui mais lentamente ou permanece estagnada.

Nesse sentido, embora a produtividade do trabalho em países como Irlanda, Noruega e Estados Unidos permaneça em patamares significativamente mais altos do que aqueles observados na maioria dos países asiáticos, os primeiros tem visto as distâncias encurtarem sistematicamente.

___________________________
1 21 lições para o século 21 (Cia das Letras, 2018).
Por essa medida, a produtividade média do trabalhador brasileiro representa um quarto e um terço, respectivamente, da do trabalhador norte-americano e sul-coreano Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2019/03/19/brasil-baixa-produtividade-competitividade-comparacao-outros-paises.htm

Colunista da Aplitech Foundation
Wellington Nunes
Cientista político. Atualmente participa de um programa de pós-doutoramento na Universidade Federal do Paraná  (UFPR), onde atua como professor e pesquisador.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *